Edmund Burke e David Hume: Conservadorismo e Revolução  

Postado por Victor Garcez

A obra Reflexões sobre a Revolução na França de Edmund Burke, escrita e publicada em 1789-1790,  é um clássico do conservadorismo inglês e da opinião conservadora universal. Prova disso é que duzentos anos depois de sua publicação o livro continua sendo lido, estudado e comentado com interesse crescente. A postura que se defende no desenvolver das páginas coincide no essencial com o conservadorismo de todos os tempos e baseia-se no pressuposto de que todos os seres humanos, em seu comportamento político,  estão impossibilitados de liberar-se de cargas históricas determinantes, e que, por conseguinte, estão moralmente obrigados a limitar-se a si mesmos e não prescindir de maneira absoluta do passado que os condiciona. Não são, em uma palavra, livres de reconstruir a organização governamental e social partindo do zero, como se a carga da experiência e a tradição histórica não tivesse peso algum. Ao defender abertamente a aposta conservadora, Edmund Burke deu a seu pensamento um sentido anti-revolucionário, se definimos a atitude revolucionária aquela que defende a liberdade dos seres humanos, quando escolhem modalidades de governos coletivos, de não submeterem-se ao peso desses condicionamentos históricos nem ao influxo dessas tradições seculares. Dando por sentada sua orientação de estrito conservadorismo filosófico, é claro que o propósito de Burke foi de índole prática e esteve dirigido, como o próprio autor declara nas páginas iniciais da obra, a proteger um estilo de governo tão eminentemente aristocrático e tradicional como o inglês, de contaminações democráticas filhas da Ilustração francesa e sintomáticas de um estilo de pensar e de viver distante, segundo ele, ao mais genuinamente britânico. Inquietava-lhe a fato de que até em seu próprio partido surgisse brotos de radicalismo, e ao escrever sua obra tratava de alertar aos líderes políticos de sua mesma ideologia, e indiretamente ao Príncipe de Gales, dos perigos implicados em abraçar ingenuamente as novas idéias. Reflexões sobre a Revolução na França é, antes que qualquer coisa, um elaborado e urgente toque de alarme frente à ameaça de afrancesamento que em maior ou menor medida cerniu sobre a totalidade da Europa e seu mundo colonial a partir de 1790. Por isso mesmo é também uma defesa do Ancien Régime dentro e fora da França. Para lograr seu propósito, Burke necessitava demonstrar que os câmbios políticos radicais eram positivamente indesejáveis. Sinalizou, por tanto, o perigo de toda uma inovação e disrupção do sistema social vigente. Seu ódio pelos autores radicais se deve a que o trabalho desses dirigia-se a debilitar antigas convicções e hábitos que se constituíam como a própria estrutura do régime.
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A idéia revolucionária como recurso legítimo de alteração política havia sido razoavelmente defendida dentro das Ilhas Britânicas muito antes que tivesse lugar a toma da Bastilha. Apesar de que se pode falar de sentimento anti-revolucionário como o característico da principal corrente de pensamento político inglês, John Locke, nas páginas finais do seu Segundo Tratado sobre o Governo Civil, já havia defendido o direito a rebelião, a saber: o direito de instaurar um novo governo, se os depositários do poder tivessem abusado do mesmo. Mas a história demonstrou que esse recurso sancionado por Locke nunca gozou de notável popularidade em seu próprio país. E é muito provável que fosse Hobbes, e não ele, o tratadista político inglês que melhor conseguiu conhecer o temperamento de seu povo. A verdade é que a cultura inglesa, como Burke pensava, tratou normalmente de compatibilizar seus câmbios sociais com as mais estritas tradições da monarquia hereditária e a aristocracia.
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Porém o que há de mais interessante na obra, sem descartar as partes de signo histórico especulativo e documental, é o pressuposto doutrinal, desvinculado de tais circunstâncias de lugar ou tempo. Em uma palavra, se trata de considerar a obra de Burke, olhando especialmente os pressupostos de antropologia filosófica. É normal escutar que a força que preside todo pensamento conservador é a vis moderadora, a resistência ao extremismo e a utopia. Nesse sentido, é verdade que há no conservador uma aversão à desordem, ainda que seu contrário implique desigualdades e injustiças. O conservador prefere o ordenado ao justo. Como muito, o compromisso que está disposto a tolerar é a reforma (opção muitas vezes improvável, enquanto que nela se assume que a natureza humana é sempre capaz de contentar-se com as posições conciliadoras e soluções intermédias). Mas a questão que estimo essencial para entender a raiz mesmo do conservadorismo é a de seus remotos pressupostos gnosiológicos. É aqui aonde se faz necessário recordar a explicação que os pensadores do “sentido comum”, muito especialmente David Hume, tiveram a oportunidade de nos dar sobre tão vasto tema. Coloco Hume dentro de dita corrente de pensamento (a formula “filosofia do sentido comum” pode significar várias coisas), enquanto que seu modo de reflexão não se resolve nunca no empenho de levar à prática as conclusões obtidas mediante o uso da pura razão. Tal propósito seria simplesmente impossível. Poucos autores foram tão severos como Hume com os resultados de suas próprias considerações especulativas. E isso porque, para Hume, as conclusões obtidas por meio da razão são suscetíveis de serem minadas por uma tendência natural de signo contrário que as contradiz e anula. Ainda que essa tendência possa ser errônea se analisamos utilizando como critério cânones racionais, sempre conseguirá, sem embargo, erguer-se com a vitória. Na ordem do conhecimento, nosso último recurso é sempre ceder frente às forças do impulso natural, deixar que cresça em nós uma sorte de descuido que nos permita tomar o falso como verdadeiro. Pese a que podemos ser conscientes das arbitrariedades da imaginação, do hábito ou dos costumes, temos que contar com eles, porque são eles, e não outras coisas, os que possibilitam em nós uma vida mais conforme com o que a natureza humana exige. A natureza humana, dirá Hume, é muito forte e ela oferece “soluções” aonde à razão não pode procurá-las. Ante as leis impostas pela natureza humana há de se render e reconhecer que qualquer sistema, seja dogmático ou cético, é arrasado por ela. A recomendação de Hume (ainda que ele mesmo resistisse às vezes praticar tão absoluto submetimento) é que renunciemos ao furor filosófico – ao furor jacobino, caberia dizer tratando-se de soluções políticas – e nos entreguemos a essas outras opiniões que surgiram em nós como resultado de largas e repetidas experiências: que pensemos como habitualmente se pensa; que atuemos em conformidade com o modo de atuar normalmente aceitado, ainda sabendo que estas opções não sejam as mais conseqüentes com os ditames do proceder racional. Certo grau de descuido e inatenção, um certo grau de irracionalidade é o único remédio universal que nos permite manter-nos em pé e seguir com nossa vida pessoal e coletiva.
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A vinculação concreta entre David Hume e Edmund Burke é um fato conhecido. Como prova, ademais, a circunstância de que o autor das Reflexões se refira explicitamente ao pensador escocês. É do nosso interesse a afinidade que se observa em ambos autores e que poderia resumir-se, como acabamos de indicar, no reconhecimento de que a “pura” reflexão filosófica costuma resultar em conclusões demasiadamente distantes do que é o sentido natural dos homens. Na ordem do pensamento especulativo, dizia Hume, é inevitável que a filosofia estrita nos leve à via cética e nos ensine, por exemplo, que o mundo exterior não existe e que a mesa que toco ou a árvore que vejo são meras percepções e não realidades físicas fora do meu eu. Mais ainda, reconhecendo nessa conclusão seu possível valor de verdade, poderia alguém sentir-se satisfeito de maneira vital? Repitamos: para Hume, sempre se dá na natureza humana uma supremacia do instinto natural, do costume, do hábito e das nossas crenças, sobre os produtos da razão escota. Esta radical separação entre idéias e crenças – depois, como se sabe, utilizada e elaborada por Ortega y Gasset – é de importância fundamental para entender Hume e, conseqüentemente, também Burke. Um ou outro reconhecem (com o nível de acerto que cada um de nós queiramos concederem-lhes) o que ao parecer não lograram entender totalmente os philosophes da Revolução: que a natureza humana é sobremaneira dogmática; e que ainda que possa ser momentaneamente deslumbrada pela habilidade e profundidade do raciocínio, seu desconcerto não tardará em ser esquecido e repousará de novo em convicções e preconceitos adquiridos por vias não necessariamente racionais. Diz assim Hume em um parágrafo que aqui merece recordar:
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“Hay una gran diferencia entre las opiniones que formaron tras una tranquila y profunda reflexión, y las que abrazamos por una especie de impulso o instinto natural, por razón de su acuerdo y conformidad con el espíritu. Si estas opiniones llegan a ser contrarias, no es difícil prever cuál de ellas llevará ventaja en la lucha. Mientras nuestra atención esté detenida en el asunto, podrá prevalecer el meditado principio filosófico; pero en el momento en que dejemos en libertad nuestros pensamientos, la naturaleza se abrirá camino y nos llevará a nuestra primera opinión”.
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Assim como as seguranças da vida, também a segurança política (diz Burke com a típica prudência humeana) se adquire evitando investigações distantes e sublimes; é necessário restringir-se ao âmbito da vida ordinária e experiência pessoal e histórica. Com exceção na ordem das matemáticas e lógica pura, não é a razão que proporciona certezas práticas: estas – que jamais são irreversíveis – provém dos sentimentos. Dessa maneira e seguindo a doutrina humeana sobre o conhecimento a posteriori, o comportamento privado e a moral pública não devem ter como princípio a razão, senão essa amparada das inclinações, hábitos e crenças próprios da natureza humana. Aplicada esta filosofia ao pensamento de Burke, entendemos melhor sua defesa inalterável do conservadorismo anti-revolucionário. Frente ao progressista que baseia suas propostas de organização política em princípios de universalidade racional, o regressista dá mais valor ao legado da transmissão de séculos, da tradição, e em tudo o que isso marcou em nós: sentimentos, paixões, interesses e preconceitos que, ao serem negados totalmente mediante um esforço de abstração, estariam traindo o verdadeiro caráter humano. Como disse acertadamente Frank O’Gorman:
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“Burke de sus estudios históricos la conclusión de que la especulación racional acerca del futuro de los Estados es empresa estéril e inútil”.
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Para Burke, os esquemas de pensamento produzidos por homens com objetivo de planificar sociedades teoricamente perfeitas não chegam nunca a nada porque descansam na suposição de que a vida dos Estados pode ser ordenada, prevista e ajustada com anterioridade ao advento dos fatos. Burke acreditava firmemente que os costumes, as instituições e, em uma palavra, o “espírito” de um povo são produtos de séculos. De tal maneira, que sempre estimou necessário conservar um laço de união com o passado, procurando estender um véu sobre as interrogações do futuro. Sua filosofia, digamos uma vez mais, foi profundamente conservadora. E seus impulsos reformistas estiveram dirigidos, não a descobrir novas vias de convivência pública, senão a restaurar o legado do passado, limpado-o de corrupções e eliminando seus excessos. Este moderado reformismo burkeano aparece uma e outra vez ao largo do texto como único caminho de endireitar as equivocações cometidas pelo Antigo Regime. Segundo Burke, o erro capital dos jacobinos foi ignorar a história e aplicar os princípios da ciência à matéria, nunca quantificável, da vida social. Ao fixar-se exclusivamente no lado físico e material dos homens, não repararam nesses intangíveis aspectos da personalidade que são especificamente humanos. Para Burke, o pacto social é, pois, diferente do que poderia surgir de uma construção estritamente lógica. É um contrato permanente, obrigatório e inalterável. Um medo hobbesiano frente a possibilidade de retorno ao estado natural, é dizer, ao estado de anarquia inumana, faz com que Burke seja flexível em sua idéia tradicional de organização política dos povos em geral, e da sociedade inglesa em particular. Ao afirmar que o Estado tem seu único fundamento na herança, na propriedade e na aplicação inalterável da lei, Burke está expressando enfaticamente seu desdém à idéia de que uma sociedade se guiará pelos desejos da maioria. Ainda que nas Reflexões possa notar-se claramente certo esforço por ocultar as preferências elitistas do autor, o certo é que toda sua filosofia social é uma vigorosa defesa do elitismo, de uma “aristocracia natural” que na França foi feriada à morte pelo jacobinismo e que era preciso defender na Inglaterra por todos os meios. Junto com essa aristocracia, outra instituição foi interditada pela ação revolucionária: a instituição eclesiástica e, com ela, a idéia Cristã de vida. A luta anti-revolucionária foi, pois, concebida por Burke como uma espécie de Cruzada dirigida a proteger a independência das nações, assim como a propriedade, a liberdade e a religião dos indivíduos – especialmente na Grã Bretanha – contra a ameaça do ateísmo. Diz Burke em outro escrito:
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“Estamos enzarzados em uma guerra de naturaleza peculiar. No estamos luchando contra una comunidad ordinaria […] Es contra una doctrina armada lo que estamos luchando, una doctrina que, por su misma esencia, tiene partidarios interesados y entusiastas en todos los países. Para nosotros es como un Coloso que amenaza con cruzar el Canal de la Mancha. Tiene un pie en la costa extranjera y otro en suelo británico. Con esa ventaja, llegará a prevalecer sobre nosotros si continúa existiendo. Nada podrá arruinar completamente los antiguos gobiernos, y el nuestro en particular, como el reconocimiento directo o implícito de que este nuevo poder es de algún modo superior. Otorgamos un tal reconocimiento si, hallándonos en una situación precaria o dudosa, solicitamos la paz, o si nos rendimos ante nuevos modos de humillación para que se nos escuche.”
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Burke raciocina partindo do patriotismo; no seu caso, desde um patriotismo monárquico e anglicano. E o patriotismo deve sempre estender-se, segundo diz José Luis González Quirós em uma de suas obras, não como abstrata conclusão racional, senão como um “sentimento moral”. Para Gonzáles Quirós “o patriotismo se manifiesta inicialmente como amor a la patria, como un sentimiento de unión y de afecto hacia los que son compatriotas y como una razón para sentir honor y orgullo por pertenecer a ella. El amor a la patria y la devoción por sus cosas son sentimientos que nos permiten considerarnos pacífica y gratamente miembros de una familia ampliada”.
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Penso que esse mesmo sentimento, ao qual deve somar-se o respeito inquebrantável pela herança do passado, é o que dá sua forma mais genuína ao britanismo conservador de Burke. Até me atreveria sugerir que é precisamente o sentimento patriótico a constante que dá orientação a todas e cada uma das páginas das Reflexões de Burke. Não esqueçamos que quando as escreveu, pensava não no publico francês (apesar do recurso estilístico de ser em forma de uma carta a um jovem galo), senão ao publico inglês, colocando-os em guarda a respeito das duas associações de afrancesados “cavaleiros londrinenses”, as chamadas Sociedade Constitucional e Sociedade Revolucionária, as quais deram sua aprovação aos acontecimentos parisienses de 1879. Foi o risco de que a Inglaterra perdesse sua própria personalidade religiosa, aristocrática, monárquica e insular, o que em maior grau motivou esse empenho de Burke. Inseparável de sua crítica aos princípios teóricos do pensamento continental ilustrado encontra-se também a defesa declarada do que se supõe ser o mais próprio estilo inglês de pensar e viver.

A pintura paisagística e o Romanticismo Inglês  

Postado por Victor Garcez


Uma das aportações mais importantes e inovadoras do romanticismo é a valor que se dá a paisagem. A natureza passa a ser vista como uma verdade, um conceito imutável, interpretada de maneira única por cada artista. Essa visão, que também abrange a outras expressões artísticas como na arquitectura neogótica e nos jardins pitorescos –, oscila entre dois pólos: o sublime a natureza e a solidão e o pitoresco a natureza é um entorno acolhedor que fomenta os sentimentos sociais do artista.



A paisagem romântica é um reflexo lírico e espiritualizado da natureza. O ser humano, ao contemplar nela a magnífica unidade paisagística, toma peremptoriamente consciência de sua própria pequenez e sente que todas as coisas estão no Absoluto, em Deus. Perde-se, dentro de si, e se deixa absorver animicamente nesse infinito. Essa ‘espiritualização’ tem como máximo representante o alemão Caspar David Friedrich (1774-1840), em cujos quadros assistimos a impotência do ser humano ante a grandiosidade da natureza.

Enquanto aos temas, poderíamos definir dois como os mais habituais: a pintura de montanhas e vales, sobre as que inclusive há tratados como os de Alexander Cozens, que busca explorar o selvagem, o agreste, e tudo aquilo que sobrevive acima das demais misérias humanas; e as paisagens com ruínas, mormente medievais, em amplas perspectivas que prolongam o espaço e reduzem praticamente ao anonimato os personagens presentes.



Por sua parte, os excelentes paisagistas ingleses, como John Constable (1776-1838), dão um giro romântico à pintura ao enfrentar-se de forma subjectiva e sem nenhuma norma académica a natureza. Constable pinta ao ar livre, e sente a natureza e a identifica com sua personalidade como único meio para representa-la.




Outro pintor, John William Turner (1775-1851), opera maior evolução; desde os paisagistas clássicos Pousin, Lourrain à uma arte puramente visionária, projectando da maneira mais sublime seus sentimentos frente ao natural. Possui um elemento perturbador, que com a violência de suas tempestades, incêndios e naufrágios, que anulam ao ser humano.







Em temas não paisagísticos, outro pintor e poeta romântico ainda que resulte inclassificável porque excede os limites mantidos pelo movimento , é o britânico William Blake (1757-1827). Grande ilustrador de obras literárias (como a Divina Comédia), logra identificar a parte visual e escrita, transmitindo ritmo e dinamismo à imagens sumamente imaginativas. Blake criou uma arte visionária, apocalíptica, fantástica, de ressonâncias miguelangelescas, aonde se sente claramente o apreço pelo medieval.